Excerto do livro Herege, de Ayaan Hirsi Ali. 30/06/2015
Entre as características mais cruciais do sistema tribal institucionalizado pelo islã está o conceito de honra. Ele requer uma explicação pormenorizada para os leitores ocidentais, cuja compreensão de termos como “família” e “honra” é fundamentalmente diferente. A estrutura familiar que devemos ter em mente é a de uma família extensa (o clã), cujos integrantes aumentam por meio de práticas como a poligamia e o casamento de crianças. Fazendo os meninos se casarem já aos quinze ou dezesseis anos, o espaço entre as gerações diminui e o número de descendentes cresce. Esse tipo de família assemelha-se muito a uma antiga árvore talal, que possui uma raiz principal profunda, um tronco robusto e uma infinidade de ramos. Folhas nascem, crescem e caem, ramos podem ser cortados, outros tomam seu lugar, mas a árvore permanece. Cada um de seus componentes é dispensável, porém não a árvore. Esse é o “valor familiar” mais importante incutido nas crianças. O indivíduo quase não conta nesse esquema.
Cada pessoa do grupo familiar tem valor para a tribo como um todo, mas certos membros são mais valiosos do que outros: homens jovens capazes de ir para a guerra defender sua família são mais úteis do que moças ou mulheres velhas. Moças núbeis são mais valorizadas do que mulheres mais velhas, pois são necessárias para gerar filhos homens, além de poderem ser trocadas. O pior pesadelo de uma família é ser desarraigada e destruída. Considerando todas as possibilidades de destruição, quanto mais um grupo familiar sobrevive, mais forte ele é. As famílias orgulham-se de sua história de resistência, transmitidas às novas gerações por repetidas histórias e poemas sobre linhagem.
Foi esse orgulho que fez minha avó me ensinar a recitar minha ascendência ao longo de muitas gerações e centenas de anos. Ela deixou claro que era dever dos jovens não só desfrutar a glória herdada de seus ancestrais, mas também mantê-la acima de tudo, ainda que isso possa lhes custar seus bens ou sua vida. Também me ensinaram a ver qualquer um que não pertencesse à minha linhagem com extrema desconfiança.
Antes da fundação do Islã, as várias famílias da Arábia colaboravam e também competiam umas com as outras através de uma rede de complexas alianças comerciais e matrimoniais, ora aliando-se em batalhas, ora lutando entre si. Nesse mundo, os conflitos dentro do clã precisavam ser debelados o mais depressa possível a fim de preservar a imagem de força; lutas internas acarretariam a percepção de fraqueza e tornariam o clã vulnerável a ataques. A honra era de suma importância. Quem insultasse ou humilhasse a linhagem tinha de ser punido. Se um homem matasse outro, por exemplo, a vingança tinha de ser não apenas contra o autor da morte, mas contra toda a família dele.
Desde o estudo de Ruth Benedict sobre o Japão na Segunda Guerra Mundial, os antropólogos fazem distinção entre as culturas da vergonha e as culturas da culpa. Nas primeiras, a ordem social é mantida inculcando-se um senso de honra e vergonha no grupo. Se o comportamento de um indivíduo traz descrédito à família, ela pode puni-lo ou até expulsá-lo. Nas culturas da culpa, em contraste, ensina-se à pessoa a disciplinar a si mesma por meio de sua própria consciência – às vezes com a ajuda da ameaça de punição após a morte. A maioria das sociedades ocidentais passou, no decorrer de mil anos, por uma transformação da vergonha a culpa, processo que coincidiu com a gradual divisão das estruturas familiares. Os europeus viveram um demorado processo de destribalização que passou pela sujeição ao direito romano, a conversão ao cristianismo, a imposição do governo monárquico ao poder baronial e a ascensão gradual de Estados-nações com seu conceito de cidadania e igualdade perante a lei.
O mundo árabe no qual o Islã triunfou em seus primórdios não passou por transição semelhante. Como escreveu Antony Black em The History of Islamic Political Thought, “Maomé criou um novo monoteísmo adequado às necessidades contemporâneas da sociedade tribal”. O efeito foi a perpetuação de normas tribais, congelando-as como escritura sagrada. Os árabes puderam ver a si mesmos como “o povo escolhido” com a “missão de converter ou conquistar o mundo”. Segundo Maomé, cada uma das grandes religiões monoteístas era uma ummah – comunidade ou nação definida pela devoção aos ensinamentos de seus respectivo profeta. Os judeus definiam-se como uma ummah por sua devoção ao livro de Moisés; os cristãos eram uma ummah unida pela devoção aos ensinamentos do profeta Jesus. A ummah islâmica, porém, destinava-se a suplantar esses outros grupos. Na ummah, todos os muçulmanos eram irmãos e irmãs. No entanto, essa noção não revogou os laços de parentesco anteriores. Como determina o Alcorão, “segundo o que foi estipulado no livro de Alá, os consanguíneos têm mais direito entre si do que os crentes e os imigrantes” (33:6). Apesar da ascensão de uma identidade religiosa pan-islâmica na qual todos os indivíduos teoricamente se submetem a Alá, o islã, portanto, conservou os elementos da cultura da vergonha.
Desde suas origens como uma nova comunidade de fiéis, o islã teve uma necessidade avassaladora de permanecer unificado, sob o risco de retornar à fragmentação tribal. O primeiro cisma em torno da questão sucessória quase acarretou o colapso da religião. Por isso, no islã a fitna – antagonismo ou discórdia – era vista como fundamentalmente destrutiva. A dissenção era uma forma de traição; a heresia, idem. Esses impulsos individualistas tinham de ser suprimidos para que se preservasse a unidade da comunidade maior. Os que se espantam com a ferocidade das punições islâmicas por dissenção não compreendem a ameaça que o ceticismo e o pensamento crítico supostamente representavam.
No contexto do clã, o comportamento vergonhoso constitui uma traição à linhagem. No contexto islâmico mais amplo, a heresia é uma ameaça comparável, assim como a descrença declarada – apostasia -, sendo ambas puníveis com a morte. Os que traem a fé têm de ser eliminados para que se mantenha a integridade da ummah.
Essa crença no perigo da dissenção teve consequências fundamentais, e talvez a mais importante delas seja a supressão da inovação, do individualismo e do pensamento crítico no mundo muçulmano. O próprio Maomé, na condição de mensageiro de Deus e na de fundador da “supertribo” islâmica, é reverenciado como uma fonte irrepreensível de sabedoria e como um modelo de comportamento para todas as épocas. Questionar sua autoridade em qualquer aspecto é considerado uma afronta inaceitável à honra do próprio islã.
Não fica bem atualmente, em círculos acadêmicos, discutir o legado das estruturas clânicas árabe no desenvolvimento do Islã. É considerado etnocêntrico, quando não orientalista, até mesmo mencionar o assunto. Mas hoje o Oriente Médio e o mundo como um todo estão cada vez mais a mercê de uma combinação das piores características de uma sociedade tribal patriarcal e do islã não reformado. E por causa dos tabus em torno do que não pode ser dito – tabus reforçados pela ameaça de represálias violentas -, somos incapazes de incutir às claras essas questões.
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Sobre a autora: Ayaan Hirsi Ali é uma ex-muçulmana nascida na Somália que se tornou famosa ao publicar uma autobiografia intitulada Infiel- a história de uma mulher que desafiou o Islã. Também é autora de outros livros: A Virgem na Jaula e Nômade. Porém seu mais novo livro chama-se Herege – por que o Islã precisa de uma reforma imediata. Todos os seus livros são publicados no Brasil pela editora Companhia das Letras. Formada em Ciências Políticas, Ayaan Hirsi Ali é a mais notória das pessoas que criticam o Islã e faz frequentes aparições na mídia em todo o mundo.